terça-feira, 24 de maio de 2016

"Dentro do mar tem rio, dentro de mim tem o quê? Vento, raio, trovão, as águas do meu querer" - parte 1

Vamos esquecer aquela parte em que eu disse que voltava por aqui antes da DPP? E também aquela em que eu sou uma cretina por responder aos comentários com meses de atraso? Vamos apenas lembrar que vocês são maravilhosos por continuarem a ler o que escrevo. Muito amor, sério.

Pois é, vocês leram o título direitinho. Quem acompanha também a nossa página no Facebook já estava por dentro dos acontecimentos. Menina Ava já está cá fora há mais de 1 mês! Já como quem diz porque a coisa toda foi um bocadinho demorada...Entre o último post e a fase em que estamos agora cabe muito bem aquela música do Cidade Negra: "Você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aquiiiiiii". O arquivo de textos mentais só cresce e um dia eles vão brotando. Por hoje, vou deixar o relato, a primeira parte dele. Senta, pega a sua aguinha e vem com tempo porque tem textão.

Passados uns bons meses do nascimento da Malu, eu voltei a remoer o parto. Achava que toda a minha questão estava em ter "falhado" e pedido a epidural. Ledo engano. Comecei a lembrar de detalhes daquele dia com mais clareza, resgatei o meu boletim de grávida com o registo prontuário, li muito sobre os protocolos a que fui submetida e dei-me conta que, mesmo me achando esclarecida, houve abuso obstétrico sim. A princípio disseram que eu tive uma laceração: foi uma episiotomia. Um corte torto, dolorido e que levou boas semanas a cicatrizar. Fizeram-me a manobra de Kristeller. Dei entrada no hospital ainda em pródromos, o que levou ao uso de ocitocina no "sorinho" e eu pensei que fosse glicose...Na última consulta antes da Malu nascer, o médico fez o descolamento das membranas sem o meu consentimento. Só descobri depois porque aquele toque tinha sido mais doloroso que os anteriores. Pedir a anestesia foi só uma consequência dessa cascata de "situações". Na sala de parto, haviam, pelo menos, 8 pessoas além de mim e do José. Enfermeiras, obstetras, estagiárias, pediatra...um aparato que não fazia qualquer sentido no caso de um parto sem quaisquer complicações. Ali eu era "mamã", a utente do processo número centoecinquentaequalquercoisa. 15 dias depois, quando fiz o relato, parecia tudo normal. Eu estava bem, a Malu também, mas havia algo, algo que me fez andar sempre às voltas com o assunto.

Quando engravidei da Ava, o meu objetivo era desfazer o nó que eu tinha na garganta, desatar, lavar a alma, como dizem. Estudei mais, fui atrás de informação, das minhas opções. Teria novamente um parto hospitalar, mas as coisas não seguiriam o mesmo curso simplesmente porque eu não deixaria que seguissem. "As águas do meu querer". Uma das primeiras coisas que eu sabia que tinha que mudar era a minha postura, eu precisava mostrar aos profissionais de saúde com quem eles estavam lidando, que eu não estava ali de enfeite e tinha sim voz ativa. Isso não precisava ser feito de forma arrogante, nem de longe. Pedi a capa de boletim de grávida da Associação Portuguesa Pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto e foi a minha forma bastante sutil de "demarcar território". Pode não parecer nada, mas o boletim é o documento mais importante que temos durante a gravidez. Dezenas de profissionais tiveram o meu nas mãos e consegui suscitar a curiosidade de vários deles. No mínimo, paravam para ler os direitos que vinham impressos na capa. Sim, eles sabiam que eu sabia.



O segundo passo foi decidir o local do parto. Tive boas impressões da Maternidade Júlio Dinis a princípio, mas depois as coisas não correram bem como eu queria. Além disso, recolhi vários relatos de violência obstétrica lá. Era de fugir. Continuei a ter lá consultas, inclusive com um endocnologista por conta do hipotiroidismo, mas sabia que tinha um lugar melhor para receber a Ava...Tecnicamente, em Portugal, podemos parir em qualquer hospital público, mesmo que esteja fora da nossa zona de residência. Segura dessa possibilidade, recorri ao Pedro Hispano. Pelas 30 semanas de gestação, eu e o José visitamos o hospital e tiramos as dúvidas. Entrar naquele local foi sentir-me abraçada, acolhida. Não tem a estrutura mais high tech de sempre, mas tem receptividade, tem afeto e tem respeito. Estava escolhido. Estava mesmo escolhido.

Outro ponto crucial foi o plano de parto. Na primeira gravidez não fiz por desconhecimento. Dessa vez, dediquei dias a ele. Esmiucei cada procedimento, cada processo, cada desejo meu para a chegada da pequena. Era preciso ser realista.  Um plano de parto não é um planejamento inflexível, um registro de excentricidades. É, acima de tudo, um documento que promove o protagonismo da mulher quando ele tem que estar no seu clímax. No meu caso, já sabendo que estaria em ambiente hospitalar, precisava me esquivar e proteger das intervenções desnecessárias, dos protocolos pouco simpáticos. Pedi que o José estudasse-o também para que decidisse quando e se eu não o pudesse fazer. Antes de qualquer peça de roupa, eu tinha o plano de parto dentro da mala da maternidade.

Como todo o resto da gravidez, as últimas semana correram bem. Estive ativa, tranquila, carreguei a Malu para cima e para baixo. Desde 20 semanas, tinha contrações de treinamento e elas foram ficando mais insistentes. A partir das 37 semanas, era vista todas as semanas. 37, 38. Saí de uma das consultas, fui fazer compras e encontrei uma pessoa que há muito procurava. A enfermeira Augusta foi uma das facilitadoras do curso de conselheira em aleitamento materno que fiz e é enfermeira obstétrica no Pedro Hispano. É uma pessoa adorável, cativante, que tem mesmo amor pelo que faz. Andava ao tempo tentando encontrar o número de telefone dela para dizer que estava grávida e que teria lá a bebê. Sei lá, era um rosto amigo. Encontrei-a naquele dia em uma loja e senti-me imediatamente segura. Ela poderia nem estar de serviço no dia do meu parto, mas soube assim que ela me sorriu: ia correr tudo bem.



39, já estava perdendo o rolhão mucoso há uns dias, mas em pouquíssima quantidade. "Vamos fazer o toque para avaliar o colo do útero". Colo macio, intermédio, 1 centímetro de dilatação. Notícias animadoras, as coisas estavam progredindo. 40. "Sente alguma coisa? Contrações? Cólicas?". Nada, não sentia mesmo nada. Não fosse o peso da barriga, parecia ter umas 25 semanas de gravidez só. Novo exame, tudo igual. O que na semana anterior era animador passou a ser não tão bom assim. "Está tudo um bocadinho atrasado...". E aconteceu outra vez, como há quase 3 anos: marcaram-me a indução para quando completasse 41 semanas. Se não entrasse em trabalho de parto até lá, deveria dar entrada pelas urgências do hospital dali a 7 dias. Provocariam o parto com um comprimido de prostalagdina. Iniciaria artificialmente e as chances de intervenções eram maiores. Mesmo com o reconhecimento da Organização Mundial de Saúde de que uma gestação normal pode ir até 42 semanas, os partos no sistema nacional de saúde português são induzidos às 41. Saí da consulta perdida,  arrasada. O José e a Malu estavam comigo. Cheguei ao carro e desabei. Toda a confiança que construí foi deitada abaixo com o olhar decepcionado da obstetra. As coisas estavam atrasadas. Meu corpo falhou. Todo mundo entrava em trabalho de parto, menos eu. Chorei . Chorei. Estava encurralada pelo sistema mais uma vez e ainda tinha que ter a Ava onde eu não queria, uma vez que a indução foi marcada na maternidade. "Tens? Tens mesmo? Por que não entras em contato com o Pedro Hispano e questiona se não podes ser induzida lá?". No dia seguinte, foi a primeira coisa que fiz. Em menos de meia hora recebi um email de resposta: eles me atenderiam a qualquer momento, avaliariam e, se fosse mesmo necessária, fariam uma indução. Era o sinal verde que eu precisava para desenvolver uma nova estratégia. 

Os dias a seguir seriam de exercício contínuo na bola de pilates (o que já era feito desde as 16 semanas), continuidade das massagens perineais para proteger o períneo já meio fragilizado por conta da episiotomia e relaxamento.  Se não entrasse em trabalho de parto espontaneamente até o dia 20 de abril, data em que estava marcada a indução, faltaria, simplesmente não compareceria. No dia 21, iria ao Pedro Hispano para ser avaliada e veríamos o que fazer, se fosse preciso fazer algo. Vale ressaltar que estive sempre bem e a Ava com vitalidade, mexia muito, ou seja, também estava bem, só precisava de tempo.

Chovia muito naquela semana. O tempo não facilitava grandes caminhadas. 19 de abril. 39 semanas e 6 dias. Cólicas muito leves.  O dia seguinte prometia sol. "Vamos fazer a tua sessão amanhã?".  A Diana (já falei dela aqui) andava há meses tentando  marcar para fazer as fotos da gravidez com José e Malu na conta. Nunca dava, o tempo não ajudava. "Vamos, ué". Entretanto, o José tirou as fotos dele, dando continuidade à tradição inaugurada na gravidez da Malu.



20 de abril. Fizemos uma sessão descontraída no dia em que eu deveria ser induzida, no dia em que completava 41 semanas. E conversamos tanto, e rimos tanto. Ela passou a gravidez a ouvir-me, a perguntar, a acompanhar. Foi um apoio fundamental, as palavras certas nos momentos certos. Despedimo-nos a chorar. Lágrimas de boas energias, de quem realmente torce. Nós as duas sabíamos a importância que esse parto e a forma como seria conduzido tinham e viriam a ter. Passei o resto do dia caminhando. O sling que vinha da Polônia chegou. Fui buscar a Malu na creche. Mais algumas cólicas leves.





Dia 21. Fomos ao Pedro Hispano. Tudo tal e qual às semanas anteriores, o rolhão mucoso a sair em maior quantidade, "o que é sempre bom sinal", segundo a médica que me atendeu. Ela queria já internar-me para uma indução, eu recusei. "E então, o que você quer fazer? A decisão é sua". "Doutora, eu quero tentar o descolamento das membranas". O famoso toque maldoso, o mesmo que me tinham feito sem consentimento há uns anos. Não deixa de ser uma forma de indução, é verdade, mas se ela não estivesse pronta para nascer o corpo não responderia. "Eu quero tentar e ir para casa. Se amanhã as coisas continuarem na mesma, logo se vê". Ela não pareceu muito convencida. Se estava há 2 semanas "estacionada", o que poderia mudar em um dia? Talvez, racionalmente, nem eu estivesse muito convencida, mas fiz o que achava que deveria. Algo me dizia que aquele era o caminho. "Agora vá andar. Se quer que a manobra surta efeito, vá caminhar". Vim para casa, lavei a cozinha, a sala, fartei-me de esfregar o chão. Fiz agachamento, básculas na bola de pilates. Fui aos correios buscar uma encomenda, buscar a Malu na creche, sempre caminhando. Estava exausta e ainda não sentia nada que não sentisse antes.

(Continua)

7 comentários:

  1. Ahhhhhh!!! Curiosa demais! Por favor não demore muito a voltar pra nos contar o resto. Enquanto eu li eu percebi o seu empoderamento. Mas ainda com todo esse empoderamento e com a cartilha em mãos, como é dificil parir em paz, lutar contra esse sistema de sorinhos e cortes. Fico aguardando o resto!
    Beijos

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    1. É mesmo, Rita! Temos de estar sempre nos esquivando de alguma coisa, de alguma intervenção.
      Volto muito em breve com o restante!:D

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  2. Já chorei rios até aqui mas, dizem q não sou curiosa, esperar é uma coisa q sei! Te ler é sempre muito bom! Um beijo e até ja!

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  3. Mulher, que loucura isso de ler prontuário próprio e descobrir barbaridades, hein?! Que raiva desse sistema feio!!

    E orgulho de vc!!! Aqui tô pedindo muito pro Dante resolver sair antes das 41+3 pq não sei se consigo peitar o sistema assim como vc peitou! Que orgulho!!! E que respeito lindo por vc e por sua filha!

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