quarta-feira, 25 de maio de 2016

"Dentro do mar tem rio, dentro de mim tem o quê? Vento, raio, trovão, as águas do meu querer" - parte 2

Dia 22. Em algum momento da madrugada, senti uma contração dolorosa, porém suportável. Estava meio a dormir, meio acordada. Pensei que tivesse sonhado e ferrei no sono outra vez. A Malu veio da cama dela aninhar-se no meu pescoço. 

Outra contração. "Acho que afinal é verdade!". Tentei, mas não consegui mais adormecer, não pela dor, mas pela excitação. 7h e qualquer coisa já não conseguia estar deitada. "Tás bem?". O José despertou comigo a levantar da cama. "Estou com contrações, mas calma que ainda estão irregulares e espaçadas". Saí do quarto e fui arrumar coisas, tenho sempre coisas para arrumar. As contrações ali. Suportáveis. Respira. Decidi monitorar com o aplicativo que tinha baixado semanas antes. Estavam regulares sim, duravam 45 segundos e vinham a cada 10 minutos. Ri que nem uma tolinha na frente do espelho. "Quem é que está com contrações dolorosas e regulares, quem é?" dizia a mensagem que enviei à Diana. Tomei banho. José e Malu levantaram. Meu pai, que tinha acabado de chegar à Portugal para uma temporada de espetáculos, ligou.

De acordo com o nosso plano, eu já iria ao hospital naquela manhã mesmo para ser novamente avaliada. A diferença é que agora, aparentemente, eu iria para ficar. Fui me preparando. Ao invés de ir para a creche, a Malu ficaria com os meus sogros porque, nunca se sabe, poderia ser um parto longo. "Ai, ainda vai demorar", eu pensava. Entre uma contração e outra, arranjei-a e expliquei mais uma vez o que iria acontecer. "Filha, vais ficar na casa da vovó e do vovô hoje, tá bem? A Ava vai sair da barriga e vem ficar conosco". Ela não queria, chorava. "Em um parto domiciliar não teríamos essa preocupação...". "Ai, ainda vai demorar. Pode nem ser hoje", mas sabendo que precisaria de energia, tomei um café da manhã reforçado, sem medo de ser feliz: cuscuz de milho.

Saímos de casa depois das 10h com mala e Malu. Contrações. Até a casa dos meus sogros, eram 25 minutos de carro. Contrações. Ficaram mais intensas no caminho. Chegamos. Minha mãe ligou. "Mãe, tenho contrações!". Deixamos a Malu entretida com os brinquedos. "Vai correr tudo bem. Uma horinha muito pequenina para ti". "Ai, ainda vai demorar", eu pensava. Seguimos para o hospital. As contrações pareciam ter espaçado, ficado irregulares. "Deixa essa mala no carro. Ainda vai demorar. Vais andar sempre com essa coisa atrás?". Um José muito teimoso decidiu levar a mala e responsabilizar-se por ela. "Não sei pra que...ainda vai demorar...", ia eu bufando até a entrada das urgências. 

11h e mais qualquer coisa. Fui admitida. "Romana Vieira?". Um médico de ar muito simpático veio me buscar à recepção. "Tem dores?" "Algumas, nada de mais". "Olha, é a Romana!". Aparentemente, fiquei famosa por ter fugido de mais uma indução no dia anterior. "41 semanas e 2 dias...muito bem. Vamos ter que deixar até às 43" "Se estiver tudo bem, eu não me importo nada!". Andávamos ali a brincar e eu já convencida que viriam outra vez falar em indução. Esperei ter apenas uns 2 cm de dilatação. "Ora vamos ver...isso está muito bem encaminhado! 4 cm e colo permeável, macio. A senhora já vai para sala de partos!". "WHAT??? 4 cm???? Meu Deus!". As lágrimas começaram a escorrer. Sorria tanto que não conseguia fechar a boca. Fui encaminhada para o CTG. O José entraria quando fosse para a sala de partos. "Não acredito!". Quem estava a fazer as admissões no CTG? A enfermeira Augusta! "Não acredito!". E cumprimentei-a com tanta efusividade, tanta felicidade. Por vê-la, pelo meu corpo ter "respondido".

Estar deitada em uma marquesa com cintas atadas à barriga é tudo o que menos se deseja quando se tem contrações, mas nem me importei. "Eu vou ficar! Tenho 4 cm de dilatação!", dizia a mensagem ao José. A mesma coisa para a Diana. "Meninas, estou em trabalho de parto!" foi o que enviei no Whatsapp para a Lívia e a Irina, colegas de universidade, amigas da vida e com quem partilhei a angústia das últimas semanas. Precisava partilhar aquilo com as pessoas, precisava que elas ficassem felizes por mim também. No parto da Malu, passei por tudo sozinha praticamente. Éramos eu e o José ali e não quis que ninguém soubesse de nada até ela estar nos meus braços. Foi um bocado egoísta, talvez, mas não queria gerar expectativas, ansiedade. Dessa vez, desarmei-me. Precisei de suporte, de "vai dar tudo certo, vai correr tudo bem". Precisei da Irina dizendo que estava rezando para Nossa Senhora do Bom Parto, apesar de eu ser muito pouco católica. Da Lívia fazendo piada, mas também dando força. Da Diana orientando-me a pedir proteção para o anjo Miguel. Ela enviou-me a foto de uma vela. "Só será apagada quando a Ava nascer". Enviou-me mais uma foto. "Hoje é Dia da Terra!".



"A senhora vai querer ocitocina?" "Não!". O médico andava a fazer o meu internamento. Eu só queria que o corpo continuasse a fazer o seu trabalho. Combinamos então que seria reavaliada às 14h e decidiria o que fazer a seguir, se fosse preciso fazer algo. "O plano...o plano de parto!". Lembrei-me dele! "Enfermeira, eu tenho um plano de parto! Está com o meu marido!". Foram buscar. O médico leu, aprovou. Pudera, não tinha nada de absurdo ali. O documento seguiu junto com o processo. "Vamos?". Eu e uma enfermeira fomos buscar o José...e a mala. Troquei de roupa. 13h05. 


"Vai almoçar porque ainda vai demorar". O José foi comer. Puseram-me a primeira dose do antibiótico. Como tive uma infeção urinária por streptococcus durante a gravidez, fiz para minimizar o risco da Ava ter uma sepsis neonatal. A próxima dose seria dali a 4 horas. Mesmo com medicação intravenosa, conseguia ter mobilidade. Arranjaram-me um suporte móvel e lá ia eu pelos corredores. Tinha de fazer a minha parte, eu sabia. José de volta. Acabou o soro. Pedi uma bola de pilates. Básculas, agachamentos. Contrações, contrações, Estavam mais intensas, mas eu aguentava.



14h15. Mudança de turno. A enfermeira Augusta veio despedir-se. "Ficas em boas mãos" "Eu sei". Fui buscar Maria Bethânia no Spotify. Passei a gravidez ouvindo "Dentro do mar tem rio", que é meu CD favorito dela. Tem cheiro da casa da minha mãe aos domingos. Ela ouvia enquanto me obrigava a ajudar na faxina, algo que nenhuma preguiça adolescente tolera. 


Um mar de sim e de não
Dentro do mar tem rio
É calmaria e trovão
Dentro de mim tem o quê?

Dentro da dor a canção
Dentro do guerreiro flor
Dama de espada na mão
Dentro de mim tem você


14h30 mais ou menos. Vem a enfermeira Francisca apresentar-se. Ficaria conosco aquele turno. Dali a uns minutos viria também a enfermeira Cristina para avaliar o progresso. Eu não fazia grande ideia da regularidade das contrações, só da intensidade. Deixava-as vir e sentia. Nos intervalos, dançava Beyoncé e vagueava pela timeline do Facebook. "Liga pro teu pai pra saber da Malu". Ela estava a fazer a sesta.

Perto das 15h, vieram fazer o toque e uns minutos de CTG. 5cm de dilatação, colo extinto. Muito bom. A enfermeira Cristina perguntou como eu me sentia e se, apesar de estar expresso no meu plano de parto o contrário, pretendia ocitocina ou amniotomia. "Não, obrigada. Vou continuar assim". "E quer tomar alguma coisa?". Vinha bebendo muita água, mas..."Pode ser um chá". Apesar de só ter tomado café da manhã, nem pensava em comer. Santo cuscuz! O José foi tomar um café. Deixaram as luzes mais fracas e deitei um pouco para descansar. Foi aí que veio a primeira contração capaz de me desestabilizar. Foi longa, perdi um pouco o controle, o ar. Era impossível continuar na cama. O José voltou. Mais uma. "Faz-me a massagem na lombar! Depressa!". 

Saí da cama e fui para a bola. Ainda tinha o CTG, mas ao menos conseguia ter mobilidade. Os intervalos foram ficando menores, a dor cada vez mais lancinante. Respira. Respira. Às vezes pegava no telemóvel, mas não conseguia ver mais nada. Comecei a desligar. "O que eu posso fazer? O que eu posso fazer para me ajudar?". Vocalizar, claro, vocalizar. A dor vinha e eu deixava que ela fluísse até a garganta. "Aaaaaaaaaaaahhhhh ahhhhhhhhh ahhhhhhhhhh". Eu tenho uma dificuldade normalmente de falar o que sinto, usar a voz, mais facilmente uso a escrita. Nesse dia, vocalizei, exorcizei. Trouxeram o chá.



Os intervalos entre as contrações já eram praticamente inexistentes. Falavam comigo e eu não conseguia responder, mas a cabeça não parava. Só murmurava pelo José para que ele não parasse de fazer a massagem. Eu não aguentava, não podia, queria descansar. Uma contração e a vontade de fazer força. Aliás, a força veio por ela, não conseguia controlar, o corpo falava sozinho. "Enfermeira, estou a fazer força. Tenho vontade de fazer força" "Como? Mas eu acabei de examinar...não é possív...Respire, Romana, tenha calma. Se tiver vontade de puxar outra vez, avise". Eu sempre em cima da bola de pilates.

Eu não aguentava, não podia, queria descansar. "Enfermeira, eu quero a epidural!". Quase berrei. Tinha cedido outra vez. Não queria, mas não aguentava, não podia. A enfermeira Francisca baixou-se até o nível dos meus olhos, segurou nas minhas mãos. "Romana, não se sinta a falhar, não fique triste. Você tem sido muito forte. Não fique dececionada consigo, está bem?". Não conseguia responder, tinha vontade de chorar. Foram chamar a anestesista. Contrações. Sentia o corpo a abrir, a queimar. "Está na fase ativa".



Invoquei o anjo Miguel. Não comunicava. Era um esforço enorme. A anestesista chegou e começou a dar uma palestra. Entre uma contração e outra, tentava me explicar o que implicava a epidural, os efeitos. Perguntou se eu era capaz de ficar quieta durante a introdução do catéter. Acenei que sim. Não, não era. Por último, disse que era preciso ainda fazer uma análise rápida ao meu sangue porque minha última contagem de plaquetas estava baixa, o que impediria o uso da anestesia. Coisa rápida, em 15 minutos teria o resultado. Colheram-me sangue. Ela muito calmamente levou-o. Eu estava a desesperar. Tinha perdido totalmente o controle da respiração, da vocalização. E mais uma vez a força. Vinha não sei de onde, fazia-se sozinha. "Está a puxar? Sente vontade de fazer força?". Novamente eu não respondi, sequer conseguia articular palavras. 

Lá estava a força. Cravei as unhas no meu joelho, triquei os dentes. Não doía mais, era só força. O José estava atrás de mim, mas eu nem dei conta. Começaram a preparar a sala. "A pediatra que venha para receber o bebé". Pediatra? Não, ainda vai demorar. Força, Força, "Romana, consegue passar para a cama para examinarmos?". Não conseguia. Estava colada na bola. "Romana?" "Amor?". Assim que fiz menção de levantar, a bolsa rompeu. Foram os 3 passos mais difíceis que dei até hoje. Cheguei à cama, a anestesista apareceu do meu lado. "Parece que já não precisam de mim, pois não?. Riu-se e sumiu da mesma forma que apareceu. Ela sempre soube que não ia dar tempo, sabia que eu não queria aquilo.

"Ponham-me na vertical! Não quero estar deitada! Não quero!". Subiram a cabeceira ao máximo, o José apoiou as minhas costas. Força. Força. Silêncio. "Ela já está quase aqui!". O círculo de fogo. "Quer sentir a cabeça da sua bebé?". Estava mesmo ali. Força. Força. O corpinho escorregou. "EU CONSEGUI!". A enfermeira Francisca desfez a circular de cordão que ela tinha no pescoço e colocou-a no meu colo. 16h38. Chorei que nem criança. "Eu consegui! Eu consegui!". Não parava de repetir. "Conseguiu sim!". Os olhos dela estavam marejados por trás da máscara. Nunca me vou esquecer. "Eu consegui! Eu consegui!". O José cortou o cordão depois que este parou de pulsar, tal como descrevemos no plano. Dia da Terra, dia do Descobrimento do Brasil, dia da Ava. 3,310kg, 50 cm, um cabeleira incrivelmente vasta e olhos cinzentos.



Agarrou-se à mama de imediato. Nasceu a placenta, a laceração foi superficial. O José mandava videos para minha mãe, para o meu irmão. Eu ria. Eu rio. "Caramba, que loucura!". Fiz selfies, fiz videos. Era só adrenalina a correr nas veias. Ficamos ali 2h, 3h antes de ir para o internamento. Eu só ria. Eu consegui!



EU CONSEGUI!


terça-feira, 24 de maio de 2016

"Dentro do mar tem rio, dentro de mim tem o quê? Vento, raio, trovão, as águas do meu querer" - parte 1

Vamos esquecer aquela parte em que eu disse que voltava por aqui antes da DPP? E também aquela em que eu sou uma cretina por responder aos comentários com meses de atraso? Vamos apenas lembrar que vocês são maravilhosos por continuarem a ler o que escrevo. Muito amor, sério.

Pois é, vocês leram o título direitinho. Quem acompanha também a nossa página no Facebook já estava por dentro dos acontecimentos. Menina Ava já está cá fora há mais de 1 mês! Já como quem diz porque a coisa toda foi um bocadinho demorada...Entre o último post e a fase em que estamos agora cabe muito bem aquela música do Cidade Negra: "Você não sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aquiiiiiii". O arquivo de textos mentais só cresce e um dia eles vão brotando. Por hoje, vou deixar o relato, a primeira parte dele. Senta, pega a sua aguinha e vem com tempo porque tem textão.

Passados uns bons meses do nascimento da Malu, eu voltei a remoer o parto. Achava que toda a minha questão estava em ter "falhado" e pedido a epidural. Ledo engano. Comecei a lembrar de detalhes daquele dia com mais clareza, resgatei o meu boletim de grávida com o registo prontuário, li muito sobre os protocolos a que fui submetida e dei-me conta que, mesmo me achando esclarecida, houve abuso obstétrico sim. A princípio disseram que eu tive uma laceração: foi uma episiotomia. Um corte torto, dolorido e que levou boas semanas a cicatrizar. Fizeram-me a manobra de Kristeller. Dei entrada no hospital ainda em pródromos, o que levou ao uso de ocitocina no "sorinho" e eu pensei que fosse glicose...Na última consulta antes da Malu nascer, o médico fez o descolamento das membranas sem o meu consentimento. Só descobri depois porque aquele toque tinha sido mais doloroso que os anteriores. Pedir a anestesia foi só uma consequência dessa cascata de "situações". Na sala de parto, haviam, pelo menos, 8 pessoas além de mim e do José. Enfermeiras, obstetras, estagiárias, pediatra...um aparato que não fazia qualquer sentido no caso de um parto sem quaisquer complicações. Ali eu era "mamã", a utente do processo número centoecinquentaequalquercoisa. 15 dias depois, quando fiz o relato, parecia tudo normal. Eu estava bem, a Malu também, mas havia algo, algo que me fez andar sempre às voltas com o assunto.

Quando engravidei da Ava, o meu objetivo era desfazer o nó que eu tinha na garganta, desatar, lavar a alma, como dizem. Estudei mais, fui atrás de informação, das minhas opções. Teria novamente um parto hospitalar, mas as coisas não seguiriam o mesmo curso simplesmente porque eu não deixaria que seguissem. "As águas do meu querer". Uma das primeiras coisas que eu sabia que tinha que mudar era a minha postura, eu precisava mostrar aos profissionais de saúde com quem eles estavam lidando, que eu não estava ali de enfeite e tinha sim voz ativa. Isso não precisava ser feito de forma arrogante, nem de longe. Pedi a capa de boletim de grávida da Associação Portuguesa Pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto e foi a minha forma bastante sutil de "demarcar território". Pode não parecer nada, mas o boletim é o documento mais importante que temos durante a gravidez. Dezenas de profissionais tiveram o meu nas mãos e consegui suscitar a curiosidade de vários deles. No mínimo, paravam para ler os direitos que vinham impressos na capa. Sim, eles sabiam que eu sabia.



O segundo passo foi decidir o local do parto. Tive boas impressões da Maternidade Júlio Dinis a princípio, mas depois as coisas não correram bem como eu queria. Além disso, recolhi vários relatos de violência obstétrica lá. Era de fugir. Continuei a ter lá consultas, inclusive com um endocnologista por conta do hipotiroidismo, mas sabia que tinha um lugar melhor para receber a Ava...Tecnicamente, em Portugal, podemos parir em qualquer hospital público, mesmo que esteja fora da nossa zona de residência. Segura dessa possibilidade, recorri ao Pedro Hispano. Pelas 30 semanas de gestação, eu e o José visitamos o hospital e tiramos as dúvidas. Entrar naquele local foi sentir-me abraçada, acolhida. Não tem a estrutura mais high tech de sempre, mas tem receptividade, tem afeto e tem respeito. Estava escolhido. Estava mesmo escolhido.

Outro ponto crucial foi o plano de parto. Na primeira gravidez não fiz por desconhecimento. Dessa vez, dediquei dias a ele. Esmiucei cada procedimento, cada processo, cada desejo meu para a chegada da pequena. Era preciso ser realista.  Um plano de parto não é um planejamento inflexível, um registro de excentricidades. É, acima de tudo, um documento que promove o protagonismo da mulher quando ele tem que estar no seu clímax. No meu caso, já sabendo que estaria em ambiente hospitalar, precisava me esquivar e proteger das intervenções desnecessárias, dos protocolos pouco simpáticos. Pedi que o José estudasse-o também para que decidisse quando e se eu não o pudesse fazer. Antes de qualquer peça de roupa, eu tinha o plano de parto dentro da mala da maternidade.

Como todo o resto da gravidez, as últimas semana correram bem. Estive ativa, tranquila, carreguei a Malu para cima e para baixo. Desde 20 semanas, tinha contrações de treinamento e elas foram ficando mais insistentes. A partir das 37 semanas, era vista todas as semanas. 37, 38. Saí de uma das consultas, fui fazer compras e encontrei uma pessoa que há muito procurava. A enfermeira Augusta foi uma das facilitadoras do curso de conselheira em aleitamento materno que fiz e é enfermeira obstétrica no Pedro Hispano. É uma pessoa adorável, cativante, que tem mesmo amor pelo que faz. Andava ao tempo tentando encontrar o número de telefone dela para dizer que estava grávida e que teria lá a bebê. Sei lá, era um rosto amigo. Encontrei-a naquele dia em uma loja e senti-me imediatamente segura. Ela poderia nem estar de serviço no dia do meu parto, mas soube assim que ela me sorriu: ia correr tudo bem.



39, já estava perdendo o rolhão mucoso há uns dias, mas em pouquíssima quantidade. "Vamos fazer o toque para avaliar o colo do útero". Colo macio, intermédio, 1 centímetro de dilatação. Notícias animadoras, as coisas estavam progredindo. 40. "Sente alguma coisa? Contrações? Cólicas?". Nada, não sentia mesmo nada. Não fosse o peso da barriga, parecia ter umas 25 semanas de gravidez só. Novo exame, tudo igual. O que na semana anterior era animador passou a ser não tão bom assim. "Está tudo um bocadinho atrasado...". E aconteceu outra vez, como há quase 3 anos: marcaram-me a indução para quando completasse 41 semanas. Se não entrasse em trabalho de parto até lá, deveria dar entrada pelas urgências do hospital dali a 7 dias. Provocariam o parto com um comprimido de prostalagdina. Iniciaria artificialmente e as chances de intervenções eram maiores. Mesmo com o reconhecimento da Organização Mundial de Saúde de que uma gestação normal pode ir até 42 semanas, os partos no sistema nacional de saúde português são induzidos às 41. Saí da consulta perdida,  arrasada. O José e a Malu estavam comigo. Cheguei ao carro e desabei. Toda a confiança que construí foi deitada abaixo com o olhar decepcionado da obstetra. As coisas estavam atrasadas. Meu corpo falhou. Todo mundo entrava em trabalho de parto, menos eu. Chorei . Chorei. Estava encurralada pelo sistema mais uma vez e ainda tinha que ter a Ava onde eu não queria, uma vez que a indução foi marcada na maternidade. "Tens? Tens mesmo? Por que não entras em contato com o Pedro Hispano e questiona se não podes ser induzida lá?". No dia seguinte, foi a primeira coisa que fiz. Em menos de meia hora recebi um email de resposta: eles me atenderiam a qualquer momento, avaliariam e, se fosse mesmo necessária, fariam uma indução. Era o sinal verde que eu precisava para desenvolver uma nova estratégia. 

Os dias a seguir seriam de exercício contínuo na bola de pilates (o que já era feito desde as 16 semanas), continuidade das massagens perineais para proteger o períneo já meio fragilizado por conta da episiotomia e relaxamento.  Se não entrasse em trabalho de parto espontaneamente até o dia 20 de abril, data em que estava marcada a indução, faltaria, simplesmente não compareceria. No dia 21, iria ao Pedro Hispano para ser avaliada e veríamos o que fazer, se fosse preciso fazer algo. Vale ressaltar que estive sempre bem e a Ava com vitalidade, mexia muito, ou seja, também estava bem, só precisava de tempo.

Chovia muito naquela semana. O tempo não facilitava grandes caminhadas. 19 de abril. 39 semanas e 6 dias. Cólicas muito leves.  O dia seguinte prometia sol. "Vamos fazer a tua sessão amanhã?".  A Diana (já falei dela aqui) andava há meses tentando  marcar para fazer as fotos da gravidez com José e Malu na conta. Nunca dava, o tempo não ajudava. "Vamos, ué". Entretanto, o José tirou as fotos dele, dando continuidade à tradição inaugurada na gravidez da Malu.



20 de abril. Fizemos uma sessão descontraída no dia em que eu deveria ser induzida, no dia em que completava 41 semanas. E conversamos tanto, e rimos tanto. Ela passou a gravidez a ouvir-me, a perguntar, a acompanhar. Foi um apoio fundamental, as palavras certas nos momentos certos. Despedimo-nos a chorar. Lágrimas de boas energias, de quem realmente torce. Nós as duas sabíamos a importância que esse parto e a forma como seria conduzido tinham e viriam a ter. Passei o resto do dia caminhando. O sling que vinha da Polônia chegou. Fui buscar a Malu na creche. Mais algumas cólicas leves.





Dia 21. Fomos ao Pedro Hispano. Tudo tal e qual às semanas anteriores, o rolhão mucoso a sair em maior quantidade, "o que é sempre bom sinal", segundo a médica que me atendeu. Ela queria já internar-me para uma indução, eu recusei. "E então, o que você quer fazer? A decisão é sua". "Doutora, eu quero tentar o descolamento das membranas". O famoso toque maldoso, o mesmo que me tinham feito sem consentimento há uns anos. Não deixa de ser uma forma de indução, é verdade, mas se ela não estivesse pronta para nascer o corpo não responderia. "Eu quero tentar e ir para casa. Se amanhã as coisas continuarem na mesma, logo se vê". Ela não pareceu muito convencida. Se estava há 2 semanas "estacionada", o que poderia mudar em um dia? Talvez, racionalmente, nem eu estivesse muito convencida, mas fiz o que achava que deveria. Algo me dizia que aquele era o caminho. "Agora vá andar. Se quer que a manobra surta efeito, vá caminhar". Vim para casa, lavei a cozinha, a sala, fartei-me de esfregar o chão. Fiz agachamento, básculas na bola de pilates. Fui aos correios buscar uma encomenda, buscar a Malu na creche, sempre caminhando. Estava exausta e ainda não sentia nada que não sentisse antes.

(Continua)