Enquanto a realeza desta casa dorme tranquilamente até a próxima mamada, aproveitei pra vir fazer o relato. Engraçado como só fazem 18 dias e parece que foi há uma vida. Aliás, logo depois que eu cheguei em casa e estive olhando as fotos parecia já tão distante. O parto é realmente um rito de passagem que só entende quem passa. Volta e meia ainda tento processar, relembrar, mas acho que me faltava relatar para poder fechar o ciclo. Vamos a isso.
Lembram do post sobre a trollagem do falso TP? Naquele mesmo dia, as contrações aumentaram loucamente. Assim que subi a postagem no blog, elas vinham seguidinhas. Sim, senhores, tínhamos um ritmo. Tentei não me impressionar com o fato, visto que a semana inteira elas tinham vindo e nada. Não liguei o Contraction Timer. Segui com a vida. Ou tentei porque além de ritmadas, elas ficaram mais dolorosas. Muito mais.
Antes de seguir adiante, vou me permitir voltar uns dias. Na sexta-feira anterior, com 38s +2d, comecei a perder o tampão. Era uma questão de tempo, eu sabia, até o TP. Tempo. Não se sabia quanto. Horas ou semanas. Na segunda, começaram as contrações. Malu se anunciou, se anunciou bem, com paciência, fez-nos viver cada etapa, cada sintoma. Na quinta, tive mais uma consulta de acompanhamento. 39 semanas e 1 dia. Colo 50% extinto, 2 a 3cm de dilatação e a bomba: o médico me fala da indução. Na verdade, ele cumpriu o protocolo da maternidade. Em Portugal (no sistema público de saúde, pelo que sei) e, especificamente na Maternidade Júlio Dinis, o trabalho de parto espontâneo é esperado até as 41 semanas. Sim, eu já sabia disso, mas não esperei chegar a ter essa conversa. Eu não queria ser induzida. Eu não precisava ser induzida. Meu corpo estava indo bem. Malu chegaria no tempo dela. Ele marcou a indução pro dia 11, dali a 2 semanas, uma semana exata depois da DPP. Fiquei abalada, muda. Enquanto o médico explicava os procedimentos todos, olhei para o José com uma cara desconsolada. Quando fui me despir pra ser avaliada, ouvi os dois conversarem qualquer coisa, mas a minha cabeça ainda zumbia alto demais para prestar atenção. “Eu fico tão insatisfeito quanto você por ter que marcar a indução”. Foi o que ouvi assim que saí da salinha de troca de roupa. Deduzi, então, que o José tinha dito ao médico a minha posição sobre ser induzida. Era examinada e consolada. “É sempre melhor para a mulher entrar em trabalho de parto espontâneo. Acontece que 'eles' determinam os protocolos e resta-nos seguir. Mas temos aqui uma grande evolução. Isso está andando e muito bem!”. Falava ele da consistência do colo. Não foi o suficiente para me animar. Fim da consulta, eu com a maldita guia da indução debaixo do braço. Cumprimentos. “A Romana não se deixe ir abaixo. Confie em si. Você VAI entrar em trabalho de parto”. Cheguei em casa, olhei pro papel e me dei conta que não tinha perguntado se precisava marcar mais uma consulta pra semana seguinte. Dobrei-o de volta, coloquei na bolsa, passei a mão na barriga. “Deixa lá isso. Não vamos nem precisar desse papel, né, filha?”.
Um dia depois, estava eu pacientemente esperando o José chegar do trabalho e novamente monitorando as contrações. Algumas vinham muito fortes, outras bem fracas, os intervalos eram regulares e depois mudavam. Era sexta-feira, dia 30 de agosto. Eu estava cansada. A semana inteira sem dormir, a incerteza de quando viria a próxima. A cada contração, tentava descobrir a melhor posição para aliviar a dor. Não era agachada, não era deitada, não era na bola. Caminhando ficavam mais suportáveis. E eu caminhava de um lado pra outro. José chegou, elas continuavam. Pedi-lhe que fizesse as massagens que ensinaram no curso. Jantamos. Elas iam e voltavam. Com ritmo, sem ritmo. Praticamente de 5 em 5 minutos o José perguntava “Maternidade?” e eu “Não. Tenha calma”. A noite caminhava e eu também. Agora as dores aumentavam e aumentavam. Eram lancinantes. Tinha vontade de gritar. Segui o conselho master: banho quente. Ajudou mesmo. Fiquei debaixo d'água até quando achei conveniente. Não sei se por 1 hora, meia ou 20 minutos. Deixei de controlar o tempo, abandonei o Contraction Timer e fui, inconscientemente, arrumando o que faltava na mala da maternidade. 5H da manhã de sábado, eu joguei a toalha. “Vamos pra maternidade”. Fizemos tudo devagar, sem afobação, mas em menos de meia hora eu já me via numa sala de CTG. Durante o exame NENHUMA contração. 20 minutos com o aparelho colado na barriga e nada, aliás, tive uma bem fraca e depois outra bem forte. A enfermeira não entendeu nada, mas eu sim. “Pronto. Vim pra maternidade e o TP estancou. Paciência...”. A médica do plantão me examinou. Colo 100% extinto e 3 cm de dilatação. Ainda teve um bom tempo discutindo se eu ficaria ou se voltaria pra casa. Fiquei. E tinha caído na minha própria armadilha: tentar chegar no hospital com a maior dilatação possível . Fui cedo demais. Senti falta de uma doula.

Quando voltei à recepção, o José já estava devidamente paramentado com o crachá de acompanhante. “Ouvi dizer que vamos ficar” “Pois vamos”. E sorrimos os dois assim com frio na barriga sabendo, porém sem saber o que nos aguardava. Contração à espera da enfermeira. Subimos. Recebemos as nossas respectivas batas. Contração. Gozamos de nós mesmos com aquelas roupinhas esquisitas de hospital. Estivemos um tempo à espera da outra enfermeira. Banheiro. Outra contração. Não queria sentar. Andava de um lado para o outro. Sabia que tinha que fazer a minha parte. Sabia que precisava ajudá-la a querer sair.
Veio a outra enfermeira e fomos para a sala de expectantes, um estágio anterior à sala de partos. Cama 13. CAMA. Eu não queria ficar deitada. Eu precisava deitar um pouco. Estava tão cansada. A semana de contrações irregulares e noites mal dormidas insistia em me nocautear. Mais CTG. As contrações foram ficando espaçadíssimas. Achei que a bolsa tinha rompido. Alarme falso. Tentamos descansar meia hora que fosse. Eu na tal cama com o CTG na barriga indicando que Malu dormia profundamente, José encolhido na cadeira troncha de acompanhante.

Pelas 9h, veio a médica. 4 cm de dilatação e a pergunta: “Mas que trabalho de parto é esse sem contrações?”. Nem eu entendi. O certo é que estava avançando, lentamente, no tempo dele, mas estava. Seria já transferida para a sala de partos. Fui libertada do CTG e caminhei. Caminhei de novo. Corredor acima, corredor abaixo. Agora as contrações vinham e eu tinha que me apoiar. Era isso. Continuávamos avançando. José ajudava com as massagens. Caminhei mais. Água. Chá. Mais contrações. Perdi-me. Eu já não estava sabendo lidar com a dor. Tentei focar, tentei me concentrar. Olhava pelo vidro as obras no prédio ao lado, via um pai saindo aflito da sala de partos ao lado, conversava com o José sem realmente dar conta do assunto.


Chamaram-nos para a sala de partos. Mais CTG. E agora monitoravam também os meus batimentos e a pressão. Queria caminhar de novo, mas veio a onda de cansaço. As contrações. As contrações. As contrações. Só me apetecia chorar. Não procedia. Não fazia sentido. Por que chorar? Meu corpo inteiro gritava e eu comecei a ter medo de ouvi-lo. Fraquejei. Olhei para o José, que segurava a minha mão depois de uma contração particularmente difícil. “Vou pedir a epidural” “Tens a certeza?” “Sim”. Pedi. Estava eu com 5cm de dilatação na altura. Pedi relutante e reluto até hoje em ter feito o pedido. Senti falta de uma doula.

Veio a anestesista com todo aquele ar de anestesista e aqueles equipamentos de anestesista. Pus-me sentada na cama de costas pra ela agarrada a um travesseiro. Não podia mexer. Informava-lhe de todas as contrações. Senti a anestesia local. Sentia-a procurar o espaço epidural ali em qualquer lugar perto da minha coluna. Não conseguiu. Tentou uma segunda vez. Não conseguiu. E aqui eu tive muito medo. Medo do erro alheio. Pensei em desistir. Ela decidiu não prosseguir e chamou outra anestesista. Novamente pensei em desistir. O José estava longe, não podia segurar minha mão agora por conta da esterelização, mas dali sorriu e acenou com a cabeça pra dar segurança. Veio a outra anestesista, uma senhora enérgica que eu não lembro o nome, mas vou lembrar da voz para sempre. Ela conseguiu de primeira. A outra desculpou-se, disse que não estava bem. O ambiente quase cirúrgico foi desfeito. Eu tinha agora um catéter nas costas e continuava pensando se fiz a coisa certa. A analgesia começou a fazer efeito. Era hora do almoço. Nem me passava pela cabeça comer. Só queria água. Não me foi negada. Despachei o José para comer e fiquei sozinha. Fiquei com a Malu, na verdade. Pedi-lhe desculpas pela analgesia. Disse-lhe que queria recebê-la, queria ajudá-la a nascer e que quando precisasse eu teria força. Teria toda a força.
Nem sei quanto tempo passou. Daqui em diante, não lembro mais das horas de nada. As coisas começaram a acontecer tão rapidamente. A dose da epidural foi forte o suficiente pra me deixar sem sensibilidade nas pernas. Tinha alguma, mas não conseguia levantá-la sozinha, por exemplo. Lembrei das aulas de preparação, dos exercícios a serem feitos pra ajudar o bebê mesmo com epidural. Pedi ao José que me ajudasse a fazê-los. Lembro que a bolsa rompeu com 6cm. Logo cheguei aos 8cm. A enfermeira Carla (a única que lembro o nome e a que mais me ajudou) ia a vinha animada com o progresso do TP. Malu estava bem orientada, tinha encaixado certinho. Continuamos com os exercícios. 9 cm. Não lembro de mais muita coisa que aconteceu pelo meio do caminho. Sei que em determinado momento, a enfermeira Carla veio e disse “Romana, preciso que, a partir de agora, assim que você sentir a contração, puxe com toda força. Mas a força não é aqui em cima, é lá embaixo. Lembra do assoalho pélvico? Então. É lá”. E assim eu fiz. As contrações não doíam, mas eu sentia a barriga endurecer e empinar. Passei a sentir também uma pressão. Era ela. Estava quase. “Muito bem, Romana. É mesmo isso. Mesmo isso! Você está indo muito bem!”. A pressão aumentava. A necessidade de fazer força. Pedi que colocassem a cama no sentido mais vertical possível. Inclinaram ao máximo. O José não saiu mais do meu lado. A anestesista voltou com a médica. Ouvi um bebê chorando em algum lugar. Ainda não era Malu. “Força, Romana! Força! Vamos lá!”. A cabeça coroou. “Ela já está aqui, Romana. Está quase! Tanto cabelo! Não saiu ao pai”. A cada puxo, o medidor dos meus batimentos ultrapassava 150bpm e apitava loucamente. Tive medo de novo. Achei que não fosse dar conta. Fiz força no lugar errado. Estancamos. Outra contração vindo. “Só mais uma forcinha, Romana! Só mais uma!” “Vai, amor, tá quase”. Segurei nos apoios da cama, respirei fundo, busquei força e puxei. Puxei com toda a força que eu tinha e com a que não tinha. Achei que fosse explodir naquele momento, mas aí ela nasceu. Urrei. Foi libertador. Nascemos. 18H38. “Olha a sua filha!”. Segurei-lhe meio embasbacada, desnorteada. O José cortou o cordão. Ele meio embasbacado, desnorteado.

Pesaram, mediram e colocaram a fralda logo ali do lado. 3,630kg, 50cm. Apgar 9 no primeiro minuto de vida e 10 aos 5 minutos. Não tardou, ela voltou pros meus braços. Mexia a cabeça freneticamente. Eu ainda não sabia o que dizer. O que tinha acabado de passar ali naquela sala não dava pra ser traduzido assim de imediato. Logo eu, que tinha resposta pra tudo, tinha piada pronta pra tudo, achei melhor estar ali calada ou então sussurrando um “oi filha...”. Meu Deus, eu pari! Eu tenho uma filha!

E estivemos ali os três namoriscando, um bom tempo. Tempo suficiente para a saída da placenta e pra médica fazer a sutura da laceração. Essa, definitivamente, foi a parte mais dolorosa. O efeito da epidural tinha passado ao tempo. Tentaram uma medicação que não adiantou de nada. Foram 6 pontos massacrantes, mas uma vez acabados a enfermeira perguntou se eu queria amamentar. “Peloamordedeus, com certeza!”. Já vestidinha, ela foi colocada ao meu lado, virei e fiquei eu mesma tentando ajustar a pega. E ela mamou. Estávamos juntas de novo, cada uma no seu corpo e no corpo da outra ao mesmo tempo. Só 4 horas depois do parto fui para o internamento. Dei-lhe todo o peito que ela queria, jantei, troquei de roupa e pedi pro José avisar que já éramos 3. Ninguém até então sabia que ela chegaria naquele dia. Já eram quase 23h quando fomos pro nosso quarto e o José para casa. Alojamento conjunto irrestrito durante os dois dias em que lá estivemos. Troquei-lhe todas as fraldas, vesti-lhe todas as vezes. Começávamos ali, de fato.
Ainda tenho um nó na garganta chamado epidural. Não consigo engolir que acabei recorrendo a ela. Acabei por medicalizar o parto e isso me inibiu algumas possibilidades, como a de estar em outras posições e mais ativa. Não vou negar que preciso exorcizar esse fato. Mas ninguém me tira o prazer que foi trazer minha filha ao mundo. Fui capaz sim e ninguém nunca disse que não seria, mesmo com o meu prolapso da válvula mitral. Fui respeitada a cada segundo. Mesmo na cama, fiz o que me foi possível. Ajudei-a e ela ajudou-me, por isso digo que pari e ela pariu-nos. Somos paridos todos os dias desde o tal 31 de agosto. A cada banho dado, fralda trocada, engasgo com leite, corte de unha, vacina tomada, a cada grama aumentada, nós nascemos de novo, eu e José.